um texto que ainda não está acabado



Os Espiões de Deus
Os espiões de Deus
...um título é um ponto de chegada!
...um momento de partida!
...uma ideia!
...uma imagem que se esconde por detrás de um nome!
...uma frase!
...um círculo quebrado algures que permite saltar para dentro de outro círculo!
...um título é a decisão! ...de começar ou de acabar, a construção de uma qualquer coisa!
As coisas só estão acabadas, o que neste caso é o mesmo que dizer iniciadas quando lhe colocamos em cima um título. Um título é uma forma que se coloca por cima dos alicerces, que produz uma outra visão da consequência de acontecimentos, desdobrando caminhos que lançam sinais que até então não eram portadores de transparências. Numa casa o título pode ser o telhado, pode ser as janelas por onde se espreita para fora, pode ser a porta, pode ser a campaínha, pode ser o jardim, pode ser o cão invísivel que guarda a casa!
Os espiões de Deus
...a primeira vez que ouvi a expressão, foi num comentário de Peter Brook acerca de King Lear, a que se seguiu quase de imediato uma segunda vez, em jeito de citação de John Keats, na introdução da biografia de Ibsen de Michael Meyer. Foi o sentido obscuro e enigmático desta frase, Os espiões de Deus, que me provocou a imaginação, procurando de seguida aplicá-la a alguma coisa, dar-lhe forma e substância. Mais à frente enquanto buscava de entre os escritos de Ibsen aquele que me serviria de fonte de inspiração para a minha criação, acabei por me confrontar com um texto profundamente autobiográfico, que escapava um pouco ao meu propósito inicial, de me apropriar da estrutura de uma peça, para depois a reescrever. Peer Gynt não tem por assim dizer, uma estrutura de uma piéce bien faite, com um enredo bem trabalhado e desenvolvido que mantenha o espectador absorvido e suspenso desde o seu início até ao seu desfecho. É provavel que ao longo do seu desenrolar nos apercebamos de que modo a estrutura narrativa se vai desdobrar. Na realidade estamos perante um acto mágico, de rara grandeza, pois é-nos dado ver a vida de um ser humano desenrolar-se à nossa frente. E nesse sentido funcionamos, nós os espectadores, os leitores como espiões de um Deus qualquer, quando vemos esse desembrulhar frutificante à quase nossa mercê.
Os espiões de Deus
...no texto de Ibsen encontrei uma atraente duplicidade, pois também o personagem principal Peer Gynt, funciona como um espião de Deus; tem qualidades extras, que lhe permitem entrar e sair de cenas e situações de modos que estão para além das capacidades de um ser humano normal, e inclusive ter acesso ao reino dos trolls, criaturas semi deuses, parte humanos, parte animais, parte vegetais. É esta capacidade de transformação que lhe permite escapar ileso e sempre bem, das armadilhas que se lhe colocam, tanto pelos outros personagens, como por ele próprio, durante toda a travessia da peça. Fui mesmo tocado na leitura por um estranho sentimento, pois a peça aparenta na sua parte oculta uma luta surda, um ajuste de contas entre o autor-criador, neste caso Ibsen e o ser criado, a personagem Peer Gynt. Durante toda a peça dá a sensação que o autor pretende matar o herói, a sua própria criação. Esta sensação de que o autor se quer vingar de alguma coisa, de que quer exterminar o objecto da sua criação, como se quisesse ocultar alguma coisa, dá-nos um sentimento paradoxal: como se se pretendesse não revelar e ao mesmo tempo mostrar, como se se quisesse calar e ao mesmo tempo não se fosse capaz de estar calado, atraiu-me fortemente e deu-me a sensação de estar a testemunhar um combate muito ancestral, excessivo e mesmo desigual. O sentido do excesso do texto foi-m também muito aliciante e actrativo, pois é profundamente criativo e liberto, de modo que acabei por me deixar levar na corrente de acontecimentos que nos submerge na peça de Ibsen.
Além disso a própria estrutura da peça foi pescada de uma série de contos folclóricos noruegueses que Ibsen estudou e que conhecia muito bem. A este propósito disse ele que o sentimento de liberdade que sentiu na sua escrita, ampliara-se por saber já de antemão como a história se desenrolaria, o que lhe trouxe a possibilidade de se concentrar na linguagem e na imaginação das situações e peripécias vividas pelo personagem.
Os espiões de Deus
...a começar tudo parece impossível e tudo é possível. No começo a dificuldade está em estabelecer regras e limites num território que não os aceita e sem os quais também não existe. Lentamente vão crescendo as fronteiras, aproximando-se os limites, agarrando-se e insinuando-se, no meio de uma selva de perguntas:
...o que posso fazer?
...o que é que quero dizer?
...o que é que alguém ainda não fez?
...o que é que posso dizer que ainda ninguém tenha dito?
...o que é que não sei fazer?
...o que é que não sei dizer nem sequer capaz de sonhar?
...lentamente atrás das perguntas vêm agarradas respostas, pensamentos, sensações vagas. Instantes há em que parecem materializar-se em algo de transcendente, que ficámos na posse de segredos, mas escapam-se e ficamos a olhar para o invisível, acaba-se por desistir de perguntar o que é que aconteceu e segue-se em frente apenas. A seguir às perguntas e ao vazio das dúvidas resta-nos uma mão vazia, um peito frio, um desespero misturado com enlevo, uma teimosia misturada com incompreensão, uma derrota atrás de outra derrota, seguida de mais outra derrota. Talvez o segredo esteja no saber perder, pensa-se então e continua-se.
Segue-se apenas por uma inquietação, uma urgência, um prazo ficticio que nos impomos, algo a que nos agarrarmos, uma ligeira força que impulsiona o corpo para baixo, uma recta oblíqua em direcção ao chão, apenas um olhar com dificuldade de concentração, um olhar dificil que não olha para lado nenhum. Acredita-se simplesmente e segue-se, a maior parte dos dias da nossa vida segue-se em frente porque temos olhos colocados na parte da frente do corpo, é mais simples e mais seguro olhar em frente, seguimos e andamos em frente. Peer Gynt, queria ser imperador e correr até ao fim da vida, regressar a casa, andar às voltas e ser ele próprio. Até que chegou à encruzilhada em que o fundidor de almas o veio buscar, para levar a sua alma, para a fazer regressar ao forno que as derrete e transforma de novo em matéria para preencher carnes inertes, corpos vazios e recomeçar tudo outra vez. No final Peer Gynt, foi surpreendido por ter vivido uma vida que não era a sua, por ter dado a volta e continuar perdido. Podemos pedir adiamentos, tentar escapar, fugir, escondermo-nos detrás de uma pedra, mas acabamos por cair. É importante cair, saber cair, deixar cair, cair, cair, pois é nos momentos de queda, é no fim que as coisas verdadeiramente começam.
Os espiões de Deus
uma das coisas que alimenta as peças é o conflito? Será? Mas será a melhor maneira de encarar a construção de uma peça? É provavel que isso seja excitante e até capaz de nos envolver e fazer sofrer como espectadores, tomando partido dos mais fracos, ou dos mais fortes, ou dos mais bonitos, ou até dos menos interessados naquilo tudo, tudo dependendo para que lado estamos virados naquele momento, ou dependendo das nossas mais secretas e por vezes inconfessáveis preferências. O conflito é sem dúvida um elemento necessário à vida e à sua prosecução, mas nem sempre necessário ao desenvolvimento de uma peça de teatro. Exitem muitas peças onde o conflito não é o elemento que faz movimentar o enredo ou a acção de uma peça. O conflito é necessário mas não o princípio que guia toda a trama da peça.
Assim é em Peer Gynt, em que a crise constante em que se encontra o personagem, a sua capacidade de se pôr em causa, em desiquilibrio, é a característica principal que define o seu destino. Cada cena é uma crise mais pequena, dentro de uma crise geral que é uma vida em execução, um ser em transformação, e é nesse entrançado que nos aproximamos do final, que contém uma redenção, não religiosa, mas de amor passional que roça o patético e o não dramático, apesar de nos deixar um sentimento de desconforto claro. Neste sentido toda a peça é uma composição de pequeno temas, de dramas menores, como se fosse feita de muitas canções. Espartilhada entre histórias menores e melodias incompletas, entre mãos que lançam pedras para a frente e bombas que incendeiam navios, entre cavalos que aparecem aos desesperados no deserto e o desejo de ser profeta e imperador.
Foi com este sentimento disperso, de regressar ao local mais familiar, de regressar a casa, a esta distracção permanente que me arrastou e que me fez tropeçar numa pedra. Ao tropeçar deixei sair de dentro de mim uma impaciência que tapou o que em mim estava encoberto, trazendo-me sem resistência para o fundo uma figura esguia e preta, com um cheiro indefenido com a qual estabeleço diálogos imaginários frequentemente. Às vezes aparece-me em sonhos esse conversador, outras nos intervalos da vida irreal a que teimamos chamar real. Desta vez apareceu-me no fundo de uma escada de um bairro antigo e não consigo recordar-me se estava num sonho ou se seguia dentro de um barco misterioso, escutando as ondas do mar a bater de encontro a tudo a que as rodeia. Foi ele que me trouxe esta ideia de fazer do texto de Ibsen um mosaico de pequenos sinais de um caminho maior. De construir o espectáculo como se se tratasse de uma album de canções e de poemas.
Para esta peça, por motivos diversos, mas principalmente por motivos de linguagem, acrescido de um motivo de inclinação pessoal, quero aproximar o teatro da poesia e mais ainda da música. Por um motivo de provocação pessoal e por experimentação e busca de alternativas, procuro uma inflexão que aproxime a peça de uma ideia de concerto de câmara.
Isto, esta decisão obriga a que: as estruturas de composição têm de ser encontradas numa outra maneira; têm de procurar uma elaboração que se aproxime de uma misceginação com a declamação, o grito, o som disperso e evocatório de uma melodia ainda por definir, uma distanciação do dizer, que aproxime o texto do dito por fora do texto; esta luta é voluntária e deve precipitar uma lógica de composição nos ensaios que seja mais próxima de um mapa de um território já conhecido mas ainda inexplorado; um mapa que determine as entradas e saídas necessárias para que o enredo se desenvolva e seja apreendido, mas que não pare de se reinventar.
De início contamos com uma história que nos dá uma base para caminhar, a história de uma vida, a história da vida de Peer Gynt, um homem que falava com o sdeuses e que vendeu escravos e lembranças religiosas, com as quais fez uma imensa fortuna. Amou e foi amado, roubou e raptou mulheres, abandonou crianças, fugiu de si próprio crendo que estava aser ele mesmo. Ou tudo foi apenas uma ilusão para se enganar a si mesmo fingindo não saber que se estava a enganar? Temos as pergunats e os traços, as pistas que nos indicam o caminho e todo o resto tem de ser descoberto no próprio processo. Uma excessiva definição dos personagens, neste caso do personagem pode ser uma prisão e um modo de amarrar a apreensão de quem se encontra mais uma vez perante um vazio. É importante deixarmos espaço para se criarem formas que dêem forma às coisas consideradas impossíveis. É nesse limiar de transposição que a excitação se desdobra e o corpo aparece pronto para o milagre da morte. É assim que a vida do Peer Gynt é também a nossa vida, e o que vemos é o que vivemos. Será? Sempre as malditas dúvidas a assaltar os navios da nossa certeza como piratas de camisolas às riscas!
Mais outra dúvida: Como dar forma com um unico actor e um músico em palco a um numero infinito de personagens? Sinceramente ainda não sei, nem sei se alguma vez chegarei a saber, ou melhor a saber transformar esta coisa impossível numa possibilidade visivel e compreensível.
O começo deste trabalho situa-se no vestir de uma pele que não é nossa mas que nos é de certo modo familiar ou pelo menos bastante próxima. Aqui usamos da liberdade de sermos nós a poder estabelecer as regras, em cima de uma outra história que já nos é conhecida. Sabemos que no início alguma coisa aconteceu, e que provavelmente isso nos será revelado muito mais à frente, ou até é aceitável que nunca o seja completamente. Mas a pouco e pouco vamos ficando a saber que existem várias formas de ler esse ponto de partida, essas forças que nos empurram, e que se misturam ao ponto de se anularem umas às outras. Um excesso de fantasia protectora contra as desfeitas da realidade, uma ambição desmedida que desampara e provoca a sorte e o azar, mesmo se não acreditamos neles como motrizes da misteriosa existência que se nos depara, podem levar-nos à perdição ou à glória.
Assim na realidade não existe um constrangimento que nos limite a definição de um ponto de começo. Onde por um indefinido acaso, um certo e determinado conjunto de forças se interpôs para despoletar uma nova via que se afirma, como um ataque à rotina das coisas do mundo. Aqui é o primeiro momento em que o público se confunde com o personagem, em que o título da peça abriga não apenas aqueles que estão debaixo ou melhor dizendo em frente dos olhares dos que vêm, mas também aqueles que estão por detrás daquilo que se passa no palco. Quem são os espiões de deus, e quem vêm eles espiar?
Keeping a secret
Os segredos não são possiveis de esconder da audiência e serão segredos apenas até à primeira noite.
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