sexta-feira, abril 28, 2006
quarta-feira, abril 26, 2006
OS CAMINHOS EM DIRECÇÃO AO CENTRO

OS CAMINHOS EM DIRECÇÃO AO CENTRO
Notas para texto sobre IBSEN
31 de Janeiro
Uma das coisas que pretendo com este texto é criar um enredo com maior clareza, com uma estrutura que se renda ao contar de uma historia comum leque mais abrangente de compreensão. Ou seja, com uma menor amplitude de significados, e uma historia que se caminha para um final. Há uma curiosidade real nesta historia agora aqui que estou a começá-la que queria deixar aqui desde logo registrada. É a forma como estou a chegar aqui: cheguei cego vindo de vários caminhos ao mesmo tempo. Tenho a sensação de estar a percorrer caminhos que vêm de diversas partes, estradas que me trazem de fronteiras distantes e diversas entre si que vêm confluindo todas para um mesmo centro. Sinto mesmo que é essa a estrutura da história que se me antepõe ainda antes de estar escrita, dando-me indicações do caminho a seguir de seguida. É uma estrutura em estrela, uma estrutura em estrela do mar, uma estrutura em flor que se abre e fecha sobre si mesma dias e noites consecutivas; se conseguir ver de cima lá muito do alto, o que me é dado a ver são muitas estradas às quais não consigo encontrar um ponto de partida, que vêm mais ou menos às curvas, mais ou menos directas para aqui, para o centro onde tudo se vai encontrar e desfechar em definitivo. Digo em flor também, porque recupero uma forma que me ficou desde as Ondas de Virgínia Woolf, que se bem que não tenha entendido como é que ela o propunha, já para esse livro ela falava de uma drama novela que se abrisse como uma flor a desabrochar; aqui a estrutura em flor é mais uma vez os caminhos múltiplos que se encerram numa única direcção: é a terra que rodeia a raiz de uma rosa, é os mais pequenos filamentos de uma raiz que se engrossam à medida que sobem em direcção à flor, é a raiz propriamente dita, que recebe a água e os outros nutrientes, é a transformação que sofrem em diferentes materiais formas e funções, é o caule que recebe e que transmite e segura e propõe-se ao sol, são as folhas que não são aquilo que gostariam de ser, mas que se aceitam para poderem estar mais próximo do centro, são os animais, os insectos que devoram e sem saber estão a propiciar o jogo das cartas sem dupla face, ou com o rosto em branco invisível, que trazem as informações que nos chegam do mais profundo dos tempos; são os raios de luz que se transformam em calor e radiação desesperada, que nos guiam na noite mais míope e escura, são os mortos que nos falam e que nos arrastam para a morte para não se sentirem tão sós. Não há socorro que nos valha, a não ser o centro de tudo, a pureza da nossa consciência.
Assim gostava de começar este trabalho dando forma às muitas coisas que me fizeram aqui chegar; cada vez que inicio um projecto de escrita, e nos últimos anos estes têm-se sucedido, invoco uma série de forças e de inseguranças em simultâneo: jogo o jogo das cartas invisíveis, se assim o posso chamar. Preparo o baralho da cartas, quero ser o jogador e o jogo, o jogo e o espectador, quero enfiar tudo pelo buraco e sair de novo pelo outro lado completamente transformado com um tesouro nas mãos, como se tivesse entrado pela gruta do Ali Bá Bá e roubado tesouros que de um modo infantil e desajeitado trago à luz dos olhos dos vivos que ainda não morreram. Neste projecto a questão coloca-se do mesmo modo, não podendo esquecer que já é a vez numero não sei quantos que o faço. Tenho-me confrontado amiúde com este gesto de colocar dentro das palavras partes de mim, partes da minha vida e da vida dos outros que me rodeiam. Não existe uma diferença, não existe uma repetição; o que existe sou eu a transformar-me sempre e a acreditar que sairei vivo de cada um desses jogos. Eu reconheço-me e recordo-me no passado, e é por isso que me consigo deixar escrito por entre as palavras. A cada letra recupero o passado, que se torna cada dia maior enquanto o futuro vai diminuindo; e este sentimento acompanha-nos a todos e a todos os meus personagens, pelo menos os que agora vou aqui procurar dar vida. O drama maior é que eu não acredito na capacidade de dar vida a personagens, de dar vida a seres completos e fechados. O maior e mais completo gesto de vitória passa pelo grito, pelo nome que se dá, pela visão de uma sobrancelha a mexer-se em curva até ao céu. A seguir o que existe são buracos uns atrás dos outros, espaços vazios, terrenos vagos, rodeados de partes quentes e em decomposição.
As pistas que percorri até aqui chegar à forma que se seguirá, foram então:
1º uma conversa com um amigo que me apresentou ao Ibsen, o dramaturgo, o homem das suíças, os gigantes, o poeta que sorri ligeiramente para as fotografias, nas quais parece quase não caber. Esse é não o primeiro caminho, mas foi aquele que me deu o bilhete com o nome do destino para onde me devia, ou que eu queria, queria?... chegar. A partir daí foi-me dado um endereço, uma data, um espaço, um lugar para onde me dirigir e sem quase dar por isso, a minha consciência transformou-se e transformou a sua pureza, para nunca mais. Pus-me então a caminho.
2º no meio desse caminho tenho-me perdido vezes sem conta; na verdade não tenho feito outra coisa senão caminhar perdido por entre os destroços de um passado que não conheço, tropeçando nas pedras que me deixaram a que eu distraidamente não ligo; a sua consciência ofende-se e o seu sentido de oportunidade faz com que se atirem contra mim repetidas vezes, obrigando-me a olhar para elas, obrigando-me a vê-las, pois deixam marcas profundas, negras espalhadas pelo meu corpo;
3º uma outra conversa com um velho tio à saída de uma peça de teatro, essa forma artística em vias de extinção, deixou-me outra vez com um sinal nas mãos, pois encontrava-me a caminho de um lugar desconhecido, com pouca confiança é certo, mas os seus impulsos desconexos que misturavam aguas de diferentes fontes, acabaram por envenenar as minhas frágeis certezas; senti as pernas tremer nesse momento, como muitas outras vezes e o meu coração bateu no andar de cima, enganando-se na porta; caminhei para a frente e para trás com passos pequenos e fiquei exactamente no mesmo lugar, no momento em que ele desdenhou da minha fraca sabedoria, e caí de bruços com o buço no chão, caí desamparado para nenhum lado e fiquei de pé; o que eu desejava fazer, aquilo porque tinha com elevado cuidado montar e fazer sobressair das minhas duvidas, arrastou-me como um corpo pesado e morto e já tinha desistido e fugido mesmo ainda antes de ele abrir a porta e deixar sair o veredicto; o homem das suíças é fraco e não escreve nada de muito interessante disse ele que também é escritor e tem invejas a sair-lhe por todo o lado, apesar da sua natural boa disposição e bem aventurança; mas sem saber como nem porquê uma voz nova, outra voz que era dele mas era diferente, uma natural inflexão do ser que se manifesta através do ar que sai de dentro de cada um de nós, um diabo dizem alguns, dos muitos diabos que habitam dentro de cada ser, desatou a falar mais alto e com mais segurança, puxando para fora uma parte da memória, como quem tira um lenço usado de dentro do bolso e inclinou-lhe a cabeça para a direita, levantou-lhe a sobrancelha e retirou-lhe a cabeça antiga e colocou-lhe uma nova, com um brilho diferente nos olhos e tudo e obrigou-o a dizer um nome; um só nome que repetiu vezes sem conta, e afinal era um nome que continha dentro de si muitos nomes, um nome que era uma corrente, um lenço sujo a sair de dentro da escuridão de um bolso, um lenço branco que se desdobrava na noite de uma porta de teatro bem iluminada e cheia de pessoas à volta como as moscas à volta de uma cabeça morta de um cavalo branco; os nomes sucederam-se por dentro do meu peito agora lentamente mais seguro a regressar ao tema, um equilíbrio perdido que se recupera de novo, uma satisfação por poder continuar assim escondido; falou-me da casa das bonecas, falou-me do inimigo publico, daquele que destruiu as coisas à sua volta por orgulho, falou-me por fim com intervalos para auscultar as sombras do seu olhar de uma peça politica, de uma peça que eu acabei de ler e não sei se a percebi bem; falou-me como uma tempestade que se anuncia com um crescente interesse por cada detalhe e cada molécula que se revive, que sim que era a peça que eu devia fazer, que se calhar até se adequava ao momento actual, que é a miragem de qualquer criador é fazer uma obra que seja o espelho mais perfeito do mundo, daquele que existe e daquele que ainda não existe; falou-me de tudo isso e deixou-me um nome desconhecido, paginas de um livro em branco dentro do branco do meu interior ainda por embranquecer; fiquei completamente perdido no branco e sentei-me na minha consciência;
4º Cabeças de cavalos, ou cavalos brancos que aparecem sem serem chamados nem esperados; aparecem só assim, sem mais nem evidentemente, aparecem para dizer qualquer coisa muda, qualquer coisa que afinal até parece que já todos sabemos, mas que com a sua visão parece que ficamos a saber ainda melhor, mais fundo na carne no local onde o saber e o sabor se cruzam; os cavalos brancos, são uma repetição, um sem fim que se contorce sempre no mesmo lugar, da mesma família desses outros cabeças de cavalo, que vem do mesmo mundo e é aí que o perplexo se afina em cor desesperada, pois parecem ser a voz daqueles que nunca falam, a voz daqueles que nunca mais poderão dizer ui, pois a dor saiu de dentro deles e espalhou-se pela terra; os olhos que os vêm têm no entanto um movimento para dentro, em direcção ao branco do fundo das coisas, abalando as consciências de que são feitos, estejam elas bem ou mais mal feitas ou usadas;
5º mortes e mortos e passados e futuros é disso que os cavalos e as suas cabeças nos falam, os homens meios homens e meios cavalos passeiam-se por centros comerciais solitários, já muito tarde quando as multidões se foram embora, passeiam-se com chapéus de chuva fechados, pois há muito que deixou de chover; é nos momentos em que começo a perder força e convicção que me retiro para dentro desses mundos e olho para as câmaras de vigilância comum sorriso aberto e os olhos fechados;
6º a mulher que tinha uma concha dentro de si é de todos os caminhos o que mais me assusta e que menos tem a ver com o centro para onde me dirijo; mas no mesmo instante em que digo isto realizo que não é assim tão verdade, a verdade que mesmo agora acabava de dizer; a verdade era uma pequena historia que por acaso tinha ouvido contar, por uma mulher de pele escura e vestida de enigmas que atraiçoei; na verdade ela atraiçoou-me a mim e eu atraiçoei-a a ela; o mais incrível começou a acontecer pois comecei a transformar-me e por vezes eu era a mulher e outras vezes era a concha, umas vezes era o homem e outras a mulher, umas vezes era o amor e outras o ódio, umas vezes era metade de uma coisa e metade de outra; nunca percebi como se dava esta transformação, como na realidade se sucediam estes estados que se alteravam reciprocamente uns aos outros; nunca entendi como o facto de molhar as minhas pernas à beira mar fez com que se alterasse tudo dentro de mim, como cresceu esse ser estranho que vivia dentro de uma concha e que quando eu deitava a cabeça para o lado direito ele começava a falara comigo; nunca entendi realmente as coisas que ele me dizia e as coisas que me pedia para fazer; nunca entendi o seu propósito de vir parar dentro de mim. Entrou-me dentro e para dentro de mim, através de um ouvido, através do meu ouvido direito e alojou-se no mais fundo de mim, muito perto do meu tímpano, num equilíbrio periclitante, quase a escorregar para dentro do coração; era um semeador de cabeças o ser que vivia dentro daquela concha, e tinha vindo para dentro exactamente para cumprir o seu destino, ou seja semear cabeças em todos os recantos do meu corpo; em cada pedaço de osso, em cada recanto de pele, em cada cabelo ou musculo eu tinha agora uma cabeça com um diabo vermelho e pequenino dentro;
7º A solidão da lua. Caminhava de manhã sentado num carro em direcção a um encontro longamente agendado, mais uma aula, e tudo à minha volta era uma atmosfera solta e desassada, longe de mim, talvez devido aos meuspensamentos lugubres daquela manhã cinzenta. Quando despertei nem dei conta, nem me recordava do caminho que tinha feito até ali, mas caminhava seentado no carro azul, aquele meu carro azul que há muitos anos já fazia comigo aquele caminho; do meu lado direito havia uma paisagem baixa, que me ocultava o longe, que me impedia de olhar muito para lá de onde me encontrava; do lado esquerdo a paisagem era mais aberta e dava para ver o cinzento das nuvens coladas ao céu, cinzi«ento mais branco logo por detrás e colada no alto, a lua da manhã. É raro ver a lua aquelas horas, devia ser por um daqueles fenómenos que eu gostava de saber qual era mas que não me resta tempo na minha vida para conseguir perceber, no entanto chega me o tempo para admirar aqueles que sabem; mas tive a sensação que por debaixo daquela lua branco de prata, quase a querer apagar-se de encontro ao brilho profundo do céu, eu deixei entrar uma emoção, um sentimento talvez mais desconhecido que me desiquilibrou e me chamou a atenção para o interior do meu corpo; sem querer, mesmo contra vontade senti algo forte, uma comoção que me abalou apesar das trepidações do carro a alta velocidade, e deixou-me abandonado com uma sensação de desconforto, imaginando me primeiro, vivendo depois com certeza, com a certeza de quem não pode escapar daquele momento, uma tristeza, uma solidão que me arrastou para o fundo dos tempos; naquele instante eu vi a transparencia dos tempos que me perseguem, ou melhor que insistem em me acompanhar, deixando um rastro, eu vi-me sozinho a atravessar um longo e grande e enorme paisagem, uma planicie rodeada de montes suaves em frente a mim, mas tão grande que eu me senti, triste e pequeno, e só, naquele caminhar de encontro ao de lá dos montes; na verdade senti um medo que vinha de frente para mim envolvendo-me numa mirada para cima, para o céu, e deslocando-me num repente para uma outra era, para uma data muito mais anterior ao momento em que me encontrava; não durou muito aquele olhar para mim mesmo a andar sózinho e aquilo que recordo ter visto não sei se vi naquele momento ou se imaginei depois quando regressei a essa imagem; eu era um homem pensativo, vagamente feliz, talvez um pouco cansado e absorto nos meus passos, no eco dos meus passos naquela terra lamacenta e pesada, com pedras castanhas, torrões giantes entrançados com ervas humidas que lhe davam maior resistencia e a colavam; recordo-me de caminhar agarrado a um bastão alto e de ter vestido algo pesado, uma capa de linho grosso, quase parecido com fios ainda por descascar, a minha figura assemelhava-se a uma árvore mole, a um tronco em movimento; esta recordção encheu-me o corpo actual aquele que viajava no caaro de um temor, agitado por uma vaga de quente vibração do sangue de encontro às paredes do corpo; tive medo, muito medo e retirei-me daquela visão o mais depressa que consegui, pois os meus olhos forma invadidos por uma pressão que não conseguia suster as lágrimas que vinham do fundo do meu peito; liguei mais alto o rádio e segui em frente.
8º Rosmersholm e o momento em que nos pisamos uns aos outros. Esta é uma história simples em que dois personagens se amam e se enganam e se empurram um ao outro; e nesta terra, pois o nome da peça é o nome de uma terra é um lugar onde os mortos não são facilmente esquecidos diz-nos o autor da peça, ou diz-nos um dos personagens; nesta peça existem cinco ou seis personagens; três homens e duas mulheres; e toda a peça se passa dentro de uma casa e é a partir da sala dessa casa e de um dos quartos que tudo se desenrola, mas podia ser tudo feito a partir de um mesmo espaço, de uma mesma sala; mas a dúvida persiste e não se sabe se são os mortos que não se esquecem facilmente de Rosmersholm; parece que eles têm dificuldade de se separar dos que ficaram para trás deles; e é por isso que o cavalo branco aparece; aparece sempre que um morto quer falar com alguém vivo que deixou, aparece sempre que algum morto deixou uma conversa a meio, ou um assunto por resolver;
Notas para texto sobre IBSEN
31 de Janeiro
Uma das coisas que pretendo com este texto é criar um enredo com maior clareza, com uma estrutura que se renda ao contar de uma historia comum leque mais abrangente de compreensão. Ou seja, com uma menor amplitude de significados, e uma historia que se caminha para um final. Há uma curiosidade real nesta historia agora aqui que estou a começá-la que queria deixar aqui desde logo registrada. É a forma como estou a chegar aqui: cheguei cego vindo de vários caminhos ao mesmo tempo. Tenho a sensação de estar a percorrer caminhos que vêm de diversas partes, estradas que me trazem de fronteiras distantes e diversas entre si que vêm confluindo todas para um mesmo centro. Sinto mesmo que é essa a estrutura da história que se me antepõe ainda antes de estar escrita, dando-me indicações do caminho a seguir de seguida. É uma estrutura em estrela, uma estrutura em estrela do mar, uma estrutura em flor que se abre e fecha sobre si mesma dias e noites consecutivas; se conseguir ver de cima lá muito do alto, o que me é dado a ver são muitas estradas às quais não consigo encontrar um ponto de partida, que vêm mais ou menos às curvas, mais ou menos directas para aqui, para o centro onde tudo se vai encontrar e desfechar em definitivo. Digo em flor também, porque recupero uma forma que me ficou desde as Ondas de Virgínia Woolf, que se bem que não tenha entendido como é que ela o propunha, já para esse livro ela falava de uma drama novela que se abrisse como uma flor a desabrochar; aqui a estrutura em flor é mais uma vez os caminhos múltiplos que se encerram numa única direcção: é a terra que rodeia a raiz de uma rosa, é os mais pequenos filamentos de uma raiz que se engrossam à medida que sobem em direcção à flor, é a raiz propriamente dita, que recebe a água e os outros nutrientes, é a transformação que sofrem em diferentes materiais formas e funções, é o caule que recebe e que transmite e segura e propõe-se ao sol, são as folhas que não são aquilo que gostariam de ser, mas que se aceitam para poderem estar mais próximo do centro, são os animais, os insectos que devoram e sem saber estão a propiciar o jogo das cartas sem dupla face, ou com o rosto em branco invisível, que trazem as informações que nos chegam do mais profundo dos tempos; são os raios de luz que se transformam em calor e radiação desesperada, que nos guiam na noite mais míope e escura, são os mortos que nos falam e que nos arrastam para a morte para não se sentirem tão sós. Não há socorro que nos valha, a não ser o centro de tudo, a pureza da nossa consciência.
Assim gostava de começar este trabalho dando forma às muitas coisas que me fizeram aqui chegar; cada vez que inicio um projecto de escrita, e nos últimos anos estes têm-se sucedido, invoco uma série de forças e de inseguranças em simultâneo: jogo o jogo das cartas invisíveis, se assim o posso chamar. Preparo o baralho da cartas, quero ser o jogador e o jogo, o jogo e o espectador, quero enfiar tudo pelo buraco e sair de novo pelo outro lado completamente transformado com um tesouro nas mãos, como se tivesse entrado pela gruta do Ali Bá Bá e roubado tesouros que de um modo infantil e desajeitado trago à luz dos olhos dos vivos que ainda não morreram. Neste projecto a questão coloca-se do mesmo modo, não podendo esquecer que já é a vez numero não sei quantos que o faço. Tenho-me confrontado amiúde com este gesto de colocar dentro das palavras partes de mim, partes da minha vida e da vida dos outros que me rodeiam. Não existe uma diferença, não existe uma repetição; o que existe sou eu a transformar-me sempre e a acreditar que sairei vivo de cada um desses jogos. Eu reconheço-me e recordo-me no passado, e é por isso que me consigo deixar escrito por entre as palavras. A cada letra recupero o passado, que se torna cada dia maior enquanto o futuro vai diminuindo; e este sentimento acompanha-nos a todos e a todos os meus personagens, pelo menos os que agora vou aqui procurar dar vida. O drama maior é que eu não acredito na capacidade de dar vida a personagens, de dar vida a seres completos e fechados. O maior e mais completo gesto de vitória passa pelo grito, pelo nome que se dá, pela visão de uma sobrancelha a mexer-se em curva até ao céu. A seguir o que existe são buracos uns atrás dos outros, espaços vazios, terrenos vagos, rodeados de partes quentes e em decomposição.
As pistas que percorri até aqui chegar à forma que se seguirá, foram então:
1º uma conversa com um amigo que me apresentou ao Ibsen, o dramaturgo, o homem das suíças, os gigantes, o poeta que sorri ligeiramente para as fotografias, nas quais parece quase não caber. Esse é não o primeiro caminho, mas foi aquele que me deu o bilhete com o nome do destino para onde me devia, ou que eu queria, queria?... chegar. A partir daí foi-me dado um endereço, uma data, um espaço, um lugar para onde me dirigir e sem quase dar por isso, a minha consciência transformou-se e transformou a sua pureza, para nunca mais. Pus-me então a caminho.
2º no meio desse caminho tenho-me perdido vezes sem conta; na verdade não tenho feito outra coisa senão caminhar perdido por entre os destroços de um passado que não conheço, tropeçando nas pedras que me deixaram a que eu distraidamente não ligo; a sua consciência ofende-se e o seu sentido de oportunidade faz com que se atirem contra mim repetidas vezes, obrigando-me a olhar para elas, obrigando-me a vê-las, pois deixam marcas profundas, negras espalhadas pelo meu corpo;
3º uma outra conversa com um velho tio à saída de uma peça de teatro, essa forma artística em vias de extinção, deixou-me outra vez com um sinal nas mãos, pois encontrava-me a caminho de um lugar desconhecido, com pouca confiança é certo, mas os seus impulsos desconexos que misturavam aguas de diferentes fontes, acabaram por envenenar as minhas frágeis certezas; senti as pernas tremer nesse momento, como muitas outras vezes e o meu coração bateu no andar de cima, enganando-se na porta; caminhei para a frente e para trás com passos pequenos e fiquei exactamente no mesmo lugar, no momento em que ele desdenhou da minha fraca sabedoria, e caí de bruços com o buço no chão, caí desamparado para nenhum lado e fiquei de pé; o que eu desejava fazer, aquilo porque tinha com elevado cuidado montar e fazer sobressair das minhas duvidas, arrastou-me como um corpo pesado e morto e já tinha desistido e fugido mesmo ainda antes de ele abrir a porta e deixar sair o veredicto; o homem das suíças é fraco e não escreve nada de muito interessante disse ele que também é escritor e tem invejas a sair-lhe por todo o lado, apesar da sua natural boa disposição e bem aventurança; mas sem saber como nem porquê uma voz nova, outra voz que era dele mas era diferente, uma natural inflexão do ser que se manifesta através do ar que sai de dentro de cada um de nós, um diabo dizem alguns, dos muitos diabos que habitam dentro de cada ser, desatou a falar mais alto e com mais segurança, puxando para fora uma parte da memória, como quem tira um lenço usado de dentro do bolso e inclinou-lhe a cabeça para a direita, levantou-lhe a sobrancelha e retirou-lhe a cabeça antiga e colocou-lhe uma nova, com um brilho diferente nos olhos e tudo e obrigou-o a dizer um nome; um só nome que repetiu vezes sem conta, e afinal era um nome que continha dentro de si muitos nomes, um nome que era uma corrente, um lenço sujo a sair de dentro da escuridão de um bolso, um lenço branco que se desdobrava na noite de uma porta de teatro bem iluminada e cheia de pessoas à volta como as moscas à volta de uma cabeça morta de um cavalo branco; os nomes sucederam-se por dentro do meu peito agora lentamente mais seguro a regressar ao tema, um equilíbrio perdido que se recupera de novo, uma satisfação por poder continuar assim escondido; falou-me da casa das bonecas, falou-me do inimigo publico, daquele que destruiu as coisas à sua volta por orgulho, falou-me por fim com intervalos para auscultar as sombras do seu olhar de uma peça politica, de uma peça que eu acabei de ler e não sei se a percebi bem; falou-me como uma tempestade que se anuncia com um crescente interesse por cada detalhe e cada molécula que se revive, que sim que era a peça que eu devia fazer, que se calhar até se adequava ao momento actual, que é a miragem de qualquer criador é fazer uma obra que seja o espelho mais perfeito do mundo, daquele que existe e daquele que ainda não existe; falou-me de tudo isso e deixou-me um nome desconhecido, paginas de um livro em branco dentro do branco do meu interior ainda por embranquecer; fiquei completamente perdido no branco e sentei-me na minha consciência;
4º Cabeças de cavalos, ou cavalos brancos que aparecem sem serem chamados nem esperados; aparecem só assim, sem mais nem evidentemente, aparecem para dizer qualquer coisa muda, qualquer coisa que afinal até parece que já todos sabemos, mas que com a sua visão parece que ficamos a saber ainda melhor, mais fundo na carne no local onde o saber e o sabor se cruzam; os cavalos brancos, são uma repetição, um sem fim que se contorce sempre no mesmo lugar, da mesma família desses outros cabeças de cavalo, que vem do mesmo mundo e é aí que o perplexo se afina em cor desesperada, pois parecem ser a voz daqueles que nunca falam, a voz daqueles que nunca mais poderão dizer ui, pois a dor saiu de dentro deles e espalhou-se pela terra; os olhos que os vêm têm no entanto um movimento para dentro, em direcção ao branco do fundo das coisas, abalando as consciências de que são feitos, estejam elas bem ou mais mal feitas ou usadas;
5º mortes e mortos e passados e futuros é disso que os cavalos e as suas cabeças nos falam, os homens meios homens e meios cavalos passeiam-se por centros comerciais solitários, já muito tarde quando as multidões se foram embora, passeiam-se com chapéus de chuva fechados, pois há muito que deixou de chover; é nos momentos em que começo a perder força e convicção que me retiro para dentro desses mundos e olho para as câmaras de vigilância comum sorriso aberto e os olhos fechados;
6º a mulher que tinha uma concha dentro de si é de todos os caminhos o que mais me assusta e que menos tem a ver com o centro para onde me dirijo; mas no mesmo instante em que digo isto realizo que não é assim tão verdade, a verdade que mesmo agora acabava de dizer; a verdade era uma pequena historia que por acaso tinha ouvido contar, por uma mulher de pele escura e vestida de enigmas que atraiçoei; na verdade ela atraiçoou-me a mim e eu atraiçoei-a a ela; o mais incrível começou a acontecer pois comecei a transformar-me e por vezes eu era a mulher e outras vezes era a concha, umas vezes era o homem e outras a mulher, umas vezes era o amor e outras o ódio, umas vezes era metade de uma coisa e metade de outra; nunca percebi como se dava esta transformação, como na realidade se sucediam estes estados que se alteravam reciprocamente uns aos outros; nunca entendi como o facto de molhar as minhas pernas à beira mar fez com que se alterasse tudo dentro de mim, como cresceu esse ser estranho que vivia dentro de uma concha e que quando eu deitava a cabeça para o lado direito ele começava a falara comigo; nunca entendi realmente as coisas que ele me dizia e as coisas que me pedia para fazer; nunca entendi o seu propósito de vir parar dentro de mim. Entrou-me dentro e para dentro de mim, através de um ouvido, através do meu ouvido direito e alojou-se no mais fundo de mim, muito perto do meu tímpano, num equilíbrio periclitante, quase a escorregar para dentro do coração; era um semeador de cabeças o ser que vivia dentro daquela concha, e tinha vindo para dentro exactamente para cumprir o seu destino, ou seja semear cabeças em todos os recantos do meu corpo; em cada pedaço de osso, em cada recanto de pele, em cada cabelo ou musculo eu tinha agora uma cabeça com um diabo vermelho e pequenino dentro;
7º A solidão da lua. Caminhava de manhã sentado num carro em direcção a um encontro longamente agendado, mais uma aula, e tudo à minha volta era uma atmosfera solta e desassada, longe de mim, talvez devido aos meuspensamentos lugubres daquela manhã cinzenta. Quando despertei nem dei conta, nem me recordava do caminho que tinha feito até ali, mas caminhava seentado no carro azul, aquele meu carro azul que há muitos anos já fazia comigo aquele caminho; do meu lado direito havia uma paisagem baixa, que me ocultava o longe, que me impedia de olhar muito para lá de onde me encontrava; do lado esquerdo a paisagem era mais aberta e dava para ver o cinzento das nuvens coladas ao céu, cinzi«ento mais branco logo por detrás e colada no alto, a lua da manhã. É raro ver a lua aquelas horas, devia ser por um daqueles fenómenos que eu gostava de saber qual era mas que não me resta tempo na minha vida para conseguir perceber, no entanto chega me o tempo para admirar aqueles que sabem; mas tive a sensação que por debaixo daquela lua branco de prata, quase a querer apagar-se de encontro ao brilho profundo do céu, eu deixei entrar uma emoção, um sentimento talvez mais desconhecido que me desiquilibrou e me chamou a atenção para o interior do meu corpo; sem querer, mesmo contra vontade senti algo forte, uma comoção que me abalou apesar das trepidações do carro a alta velocidade, e deixou-me abandonado com uma sensação de desconforto, imaginando me primeiro, vivendo depois com certeza, com a certeza de quem não pode escapar daquele momento, uma tristeza, uma solidão que me arrastou para o fundo dos tempos; naquele instante eu vi a transparencia dos tempos que me perseguem, ou melhor que insistem em me acompanhar, deixando um rastro, eu vi-me sozinho a atravessar um longo e grande e enorme paisagem, uma planicie rodeada de montes suaves em frente a mim, mas tão grande que eu me senti, triste e pequeno, e só, naquele caminhar de encontro ao de lá dos montes; na verdade senti um medo que vinha de frente para mim envolvendo-me numa mirada para cima, para o céu, e deslocando-me num repente para uma outra era, para uma data muito mais anterior ao momento em que me encontrava; não durou muito aquele olhar para mim mesmo a andar sózinho e aquilo que recordo ter visto não sei se vi naquele momento ou se imaginei depois quando regressei a essa imagem; eu era um homem pensativo, vagamente feliz, talvez um pouco cansado e absorto nos meus passos, no eco dos meus passos naquela terra lamacenta e pesada, com pedras castanhas, torrões giantes entrançados com ervas humidas que lhe davam maior resistencia e a colavam; recordo-me de caminhar agarrado a um bastão alto e de ter vestido algo pesado, uma capa de linho grosso, quase parecido com fios ainda por descascar, a minha figura assemelhava-se a uma árvore mole, a um tronco em movimento; esta recordção encheu-me o corpo actual aquele que viajava no caaro de um temor, agitado por uma vaga de quente vibração do sangue de encontro às paredes do corpo; tive medo, muito medo e retirei-me daquela visão o mais depressa que consegui, pois os meus olhos forma invadidos por uma pressão que não conseguia suster as lágrimas que vinham do fundo do meu peito; liguei mais alto o rádio e segui em frente.
8º Rosmersholm e o momento em que nos pisamos uns aos outros. Esta é uma história simples em que dois personagens se amam e se enganam e se empurram um ao outro; e nesta terra, pois o nome da peça é o nome de uma terra é um lugar onde os mortos não são facilmente esquecidos diz-nos o autor da peça, ou diz-nos um dos personagens; nesta peça existem cinco ou seis personagens; três homens e duas mulheres; e toda a peça se passa dentro de uma casa e é a partir da sala dessa casa e de um dos quartos que tudo se desenrola, mas podia ser tudo feito a partir de um mesmo espaço, de uma mesma sala; mas a dúvida persiste e não se sabe se são os mortos que não se esquecem facilmente de Rosmersholm; parece que eles têm dificuldade de se separar dos que ficaram para trás deles; e é por isso que o cavalo branco aparece; aparece sempre que um morto quer falar com alguém vivo que deixou, aparece sempre que algum morto deixou uma conversa a meio, ou um assunto por resolver;
estas fotogafias no meio do parque são da Ana Lúcia que é uma excelente fotografa. um beijo para ela.
terça-feira, abril 25, 2006
um texto que ainda não está acabado



Os Espiões de Deus
Os espiões de Deus
...um título é um ponto de chegada!
...um momento de partida!
...uma ideia!
...uma imagem que se esconde por detrás de um nome!
...uma frase!
...um círculo quebrado algures que permite saltar para dentro de outro círculo!
...um título é a decisão! ...de começar ou de acabar, a construção de uma qualquer coisa!
As coisas só estão acabadas, o que neste caso é o mesmo que dizer iniciadas quando lhe colocamos em cima um título. Um título é uma forma que se coloca por cima dos alicerces, que produz uma outra visão da consequência de acontecimentos, desdobrando caminhos que lançam sinais que até então não eram portadores de transparências. Numa casa o título pode ser o telhado, pode ser as janelas por onde se espreita para fora, pode ser a porta, pode ser a campaínha, pode ser o jardim, pode ser o cão invísivel que guarda a casa!
Os espiões de Deus
...a primeira vez que ouvi a expressão, foi num comentário de Peter Brook acerca de King Lear, a que se seguiu quase de imediato uma segunda vez, em jeito de citação de John Keats, na introdução da biografia de Ibsen de Michael Meyer. Foi o sentido obscuro e enigmático desta frase, Os espiões de Deus, que me provocou a imaginação, procurando de seguida aplicá-la a alguma coisa, dar-lhe forma e substância. Mais à frente enquanto buscava de entre os escritos de Ibsen aquele que me serviria de fonte de inspiração para a minha criação, acabei por me confrontar com um texto profundamente autobiográfico, que escapava um pouco ao meu propósito inicial, de me apropriar da estrutura de uma peça, para depois a reescrever. Peer Gynt não tem por assim dizer, uma estrutura de uma piéce bien faite, com um enredo bem trabalhado e desenvolvido que mantenha o espectador absorvido e suspenso desde o seu início até ao seu desfecho. É provavel que ao longo do seu desenrolar nos apercebamos de que modo a estrutura narrativa se vai desdobrar. Na realidade estamos perante um acto mágico, de rara grandeza, pois é-nos dado ver a vida de um ser humano desenrolar-se à nossa frente. E nesse sentido funcionamos, nós os espectadores, os leitores como espiões de um Deus qualquer, quando vemos esse desembrulhar frutificante à quase nossa mercê.
Os espiões de Deus
...no texto de Ibsen encontrei uma atraente duplicidade, pois também o personagem principal Peer Gynt, funciona como um espião de Deus; tem qualidades extras, que lhe permitem entrar e sair de cenas e situações de modos que estão para além das capacidades de um ser humano normal, e inclusive ter acesso ao reino dos trolls, criaturas semi deuses, parte humanos, parte animais, parte vegetais. É esta capacidade de transformação que lhe permite escapar ileso e sempre bem, das armadilhas que se lhe colocam, tanto pelos outros personagens, como por ele próprio, durante toda a travessia da peça. Fui mesmo tocado na leitura por um estranho sentimento, pois a peça aparenta na sua parte oculta uma luta surda, um ajuste de contas entre o autor-criador, neste caso Ibsen e o ser criado, a personagem Peer Gynt. Durante toda a peça dá a sensação que o autor pretende matar o herói, a sua própria criação. Esta sensação de que o autor se quer vingar de alguma coisa, de que quer exterminar o objecto da sua criação, como se quisesse ocultar alguma coisa, dá-nos um sentimento paradoxal: como se se pretendesse não revelar e ao mesmo tempo mostrar, como se se quisesse calar e ao mesmo tempo não se fosse capaz de estar calado, atraiu-me fortemente e deu-me a sensação de estar a testemunhar um combate muito ancestral, excessivo e mesmo desigual. O sentido do excesso do texto foi-m também muito aliciante e actrativo, pois é profundamente criativo e liberto, de modo que acabei por me deixar levar na corrente de acontecimentos que nos submerge na peça de Ibsen.
Além disso a própria estrutura da peça foi pescada de uma série de contos folclóricos noruegueses que Ibsen estudou e que conhecia muito bem. A este propósito disse ele que o sentimento de liberdade que sentiu na sua escrita, ampliara-se por saber já de antemão como a história se desenrolaria, o que lhe trouxe a possibilidade de se concentrar na linguagem e na imaginação das situações e peripécias vividas pelo personagem.
Os espiões de Deus
...a começar tudo parece impossível e tudo é possível. No começo a dificuldade está em estabelecer regras e limites num território que não os aceita e sem os quais também não existe. Lentamente vão crescendo as fronteiras, aproximando-se os limites, agarrando-se e insinuando-se, no meio de uma selva de perguntas:
...o que posso fazer?
...o que é que quero dizer?
...o que é que alguém ainda não fez?
...o que é que posso dizer que ainda ninguém tenha dito?
...o que é que não sei fazer?
...o que é que não sei dizer nem sequer capaz de sonhar?
...lentamente atrás das perguntas vêm agarradas respostas, pensamentos, sensações vagas. Instantes há em que parecem materializar-se em algo de transcendente, que ficámos na posse de segredos, mas escapam-se e ficamos a olhar para o invisível, acaba-se por desistir de perguntar o que é que aconteceu e segue-se em frente apenas. A seguir às perguntas e ao vazio das dúvidas resta-nos uma mão vazia, um peito frio, um desespero misturado com enlevo, uma teimosia misturada com incompreensão, uma derrota atrás de outra derrota, seguida de mais outra derrota. Talvez o segredo esteja no saber perder, pensa-se então e continua-se.
Segue-se apenas por uma inquietação, uma urgência, um prazo ficticio que nos impomos, algo a que nos agarrarmos, uma ligeira força que impulsiona o corpo para baixo, uma recta oblíqua em direcção ao chão, apenas um olhar com dificuldade de concentração, um olhar dificil que não olha para lado nenhum. Acredita-se simplesmente e segue-se, a maior parte dos dias da nossa vida segue-se em frente porque temos olhos colocados na parte da frente do corpo, é mais simples e mais seguro olhar em frente, seguimos e andamos em frente. Peer Gynt, queria ser imperador e correr até ao fim da vida, regressar a casa, andar às voltas e ser ele próprio. Até que chegou à encruzilhada em que o fundidor de almas o veio buscar, para levar a sua alma, para a fazer regressar ao forno que as derrete e transforma de novo em matéria para preencher carnes inertes, corpos vazios e recomeçar tudo outra vez. No final Peer Gynt, foi surpreendido por ter vivido uma vida que não era a sua, por ter dado a volta e continuar perdido. Podemos pedir adiamentos, tentar escapar, fugir, escondermo-nos detrás de uma pedra, mas acabamos por cair. É importante cair, saber cair, deixar cair, cair, cair, pois é nos momentos de queda, é no fim que as coisas verdadeiramente começam.
Os espiões de Deus
uma das coisas que alimenta as peças é o conflito? Será? Mas será a melhor maneira de encarar a construção de uma peça? É provavel que isso seja excitante e até capaz de nos envolver e fazer sofrer como espectadores, tomando partido dos mais fracos, ou dos mais fortes, ou dos mais bonitos, ou até dos menos interessados naquilo tudo, tudo dependendo para que lado estamos virados naquele momento, ou dependendo das nossas mais secretas e por vezes inconfessáveis preferências. O conflito é sem dúvida um elemento necessário à vida e à sua prosecução, mas nem sempre necessário ao desenvolvimento de uma peça de teatro. Exitem muitas peças onde o conflito não é o elemento que faz movimentar o enredo ou a acção de uma peça. O conflito é necessário mas não o princípio que guia toda a trama da peça.
Assim é em Peer Gynt, em que a crise constante em que se encontra o personagem, a sua capacidade de se pôr em causa, em desiquilibrio, é a característica principal que define o seu destino. Cada cena é uma crise mais pequena, dentro de uma crise geral que é uma vida em execução, um ser em transformação, e é nesse entrançado que nos aproximamos do final, que contém uma redenção, não religiosa, mas de amor passional que roça o patético e o não dramático, apesar de nos deixar um sentimento de desconforto claro. Neste sentido toda a peça é uma composição de pequeno temas, de dramas menores, como se fosse feita de muitas canções. Espartilhada entre histórias menores e melodias incompletas, entre mãos que lançam pedras para a frente e bombas que incendeiam navios, entre cavalos que aparecem aos desesperados no deserto e o desejo de ser profeta e imperador.
Foi com este sentimento disperso, de regressar ao local mais familiar, de regressar a casa, a esta distracção permanente que me arrastou e que me fez tropeçar numa pedra. Ao tropeçar deixei sair de dentro de mim uma impaciência que tapou o que em mim estava encoberto, trazendo-me sem resistência para o fundo uma figura esguia e preta, com um cheiro indefenido com a qual estabeleço diálogos imaginários frequentemente. Às vezes aparece-me em sonhos esse conversador, outras nos intervalos da vida irreal a que teimamos chamar real. Desta vez apareceu-me no fundo de uma escada de um bairro antigo e não consigo recordar-me se estava num sonho ou se seguia dentro de um barco misterioso, escutando as ondas do mar a bater de encontro a tudo a que as rodeia. Foi ele que me trouxe esta ideia de fazer do texto de Ibsen um mosaico de pequenos sinais de um caminho maior. De construir o espectáculo como se se tratasse de uma album de canções e de poemas.
Para esta peça, por motivos diversos, mas principalmente por motivos de linguagem, acrescido de um motivo de inclinação pessoal, quero aproximar o teatro da poesia e mais ainda da música. Por um motivo de provocação pessoal e por experimentação e busca de alternativas, procuro uma inflexão que aproxime a peça de uma ideia de concerto de câmara.
Isto, esta decisão obriga a que: as estruturas de composição têm de ser encontradas numa outra maneira; têm de procurar uma elaboração que se aproxime de uma misceginação com a declamação, o grito, o som disperso e evocatório de uma melodia ainda por definir, uma distanciação do dizer, que aproxime o texto do dito por fora do texto; esta luta é voluntária e deve precipitar uma lógica de composição nos ensaios que seja mais próxima de um mapa de um território já conhecido mas ainda inexplorado; um mapa que determine as entradas e saídas necessárias para que o enredo se desenvolva e seja apreendido, mas que não pare de se reinventar.
De início contamos com uma história que nos dá uma base para caminhar, a história de uma vida, a história da vida de Peer Gynt, um homem que falava com o sdeuses e que vendeu escravos e lembranças religiosas, com as quais fez uma imensa fortuna. Amou e foi amado, roubou e raptou mulheres, abandonou crianças, fugiu de si próprio crendo que estava aser ele mesmo. Ou tudo foi apenas uma ilusão para se enganar a si mesmo fingindo não saber que se estava a enganar? Temos as pergunats e os traços, as pistas que nos indicam o caminho e todo o resto tem de ser descoberto no próprio processo. Uma excessiva definição dos personagens, neste caso do personagem pode ser uma prisão e um modo de amarrar a apreensão de quem se encontra mais uma vez perante um vazio. É importante deixarmos espaço para se criarem formas que dêem forma às coisas consideradas impossíveis. É nesse limiar de transposição que a excitação se desdobra e o corpo aparece pronto para o milagre da morte. É assim que a vida do Peer Gynt é também a nossa vida, e o que vemos é o que vivemos. Será? Sempre as malditas dúvidas a assaltar os navios da nossa certeza como piratas de camisolas às riscas!
Mais outra dúvida: Como dar forma com um unico actor e um músico em palco a um numero infinito de personagens? Sinceramente ainda não sei, nem sei se alguma vez chegarei a saber, ou melhor a saber transformar esta coisa impossível numa possibilidade visivel e compreensível.
O começo deste trabalho situa-se no vestir de uma pele que não é nossa mas que nos é de certo modo familiar ou pelo menos bastante próxima. Aqui usamos da liberdade de sermos nós a poder estabelecer as regras, em cima de uma outra história que já nos é conhecida. Sabemos que no início alguma coisa aconteceu, e que provavelmente isso nos será revelado muito mais à frente, ou até é aceitável que nunca o seja completamente. Mas a pouco e pouco vamos ficando a saber que existem várias formas de ler esse ponto de partida, essas forças que nos empurram, e que se misturam ao ponto de se anularem umas às outras. Um excesso de fantasia protectora contra as desfeitas da realidade, uma ambição desmedida que desampara e provoca a sorte e o azar, mesmo se não acreditamos neles como motrizes da misteriosa existência que se nos depara, podem levar-nos à perdição ou à glória.
Assim na realidade não existe um constrangimento que nos limite a definição de um ponto de começo. Onde por um indefinido acaso, um certo e determinado conjunto de forças se interpôs para despoletar uma nova via que se afirma, como um ataque à rotina das coisas do mundo. Aqui é o primeiro momento em que o público se confunde com o personagem, em que o título da peça abriga não apenas aqueles que estão debaixo ou melhor dizendo em frente dos olhares dos que vêm, mas também aqueles que estão por detrás daquilo que se passa no palco. Quem são os espiões de deus, e quem vêm eles espiar?
Keeping a secret
Os segredos não são possiveis de esconder da audiência e serão segredos apenas até à primeira noite.